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Sentidos do coletivo: experiências na cena de quadrinhos em Belém

Me. Ellen Aline da Silva de Sousa1

Encontro do coletivo Açaí Pesado
Encontro do coletivo Açaí Pesado. Foto: Aline Sousa.

Embora o termo “coletivo” apareça antes do nome do grupo como marcador de categoria, como em “coletivo Açaí Pesado”, a princípio não foi compreendido como uma categoria propriamente dita, já que parecia autoexplicativo: indicava um grupo de pessoas reunidas para fazer quadrinhos. No entanto, à medida que conhecia melhor os coletivos e a pesquisa avançava, esse termo passou a refletir as transformações observadas no percurso investigativo. Assim, as reflexões sobre a noção de coletividade evoluíram ao longo do estudo, sendo constantemente ressignificadas durante a observação participante em encontros com os coletivos, seja em aulas, laboratórios, oficinas ou eventos.

A participação nas atividades promovidas por esses coletivos evidencia que a coletividade permeia diversas relações internas e se expande para redes mais amplas e complexas de colaboração no cenário de quadrinhos em Belém. Um exemplo dessa dinâmica é a comemoração do Dia do Quadrinho Nacional, ainda nos anos 1990, resultado de parcerias entre quadrinistas e coletivos (Souza; Oliveira, 2019). Eventos como esse nascem da coletividade e geram novas formas de socialidade, ao promover encontros, diálogos e debates sobre a produção em quadrinhos. Não por acaso, a partir da década de 1990, surgem novos coletivos que, à semelhança de um rizoma (Deleuze; Guattari, 2011), vão se encadeando em uma trama contínua de conexões.

A leitura de Maffesoli (1998) contribui para compreender os coletivos de quadrinistas como experiências de estar-junto, em que os vínculos se estabelecem por afinidades estéticas e afetivas. Contrário a estruturas rígidas, o autor aborda a concepção de socialidades, isto é, formas mais sensíveis de vínculo e pertencimento. Desse modo, a interação entre as pessoas dentro dos coletivos também se fundamenta na vivência compartilhada e na espontaneidade das relações, e não apenas para uma produção comum, visto que “[…] o estar-junto é um dado fundamental. Antes de qualquer outra determinação ou qualificação, ele consiste nessa espontaneidade vital que assegura a uma cultura sua força e sua solidez específicas” (Maffesoli, 1998, p. 115). Nesse sentido, a formação e interação nos coletivos de quadrinhos refletem um modelo de socialidade dinâmica, no qual a troca contínua de experiências moldam as relações entre seus integrantes.

Já Simmel (1983), ao refletir sobre as formas sociais, propõe observar como essas socialidades se organizam, uma vez que os coletivos não podem mais ser compreendidos apenas como um conjunto de indivíduos coexistindo. As interações entre eles produzem formas sociais que, ao longo do tempo, adquirem independência e passam a exercer influência própria sobre os integrantes e os coletivos.

Desse modo, as discussões, experimentações e processos criativos em coletivo costumam extrapolar a produção de um quadrinho em si, pois é preciso considerar que “Além de seus conteúdos específicos, todas estas sociações também se caracterizam, precisamente, por um sentimento, entre seus membros, de estarem sociados, e pela satisfação derivada disso” (Simmel, 1983, p. 168). Diante desse contexto, é possível compreender que os coletivos de quadrinhos transcendem o objetivo de uma produção artística, pois as sociabilidades construídas nos processos criativos, nos debates em eventos e aulas, nas vendas de produtos e, sobretudo, nos encontros que não têm necessariamente os quadrinhos como foco central, valorizam principalmente o prazer da convivência entre seus membros. Por compartilharem ideais semelhantes, os integrantes estabelecem vínculos de amizade, independentemente das relações familiares já existentes em coletivos como o Kitnet e o Serendi, por exemplo.

Além das relações internas, é importante considerar a coletividade no cenário dos quadrinhos de forma mais ampla. Como já apontado, as colaborações entre quadrinistas e coletivos contribuem significativamente para a consolidação da produção de quadrinhos em Belém, acompanhando diversas iniciativas. Entre elas, destacam-se a consolidação da Semana do Quadrinho Nacional, realizada pela Fundação Cultural do Pará em parceria com os artistas; edições do evento Ilustra! Narrativas em Ação, que geralmente segue o mesmo modelo de organização da Semana do Quadrinho; a formação de novos coletivos; o recente Circuito Amazônico de Quadrinhos, que integrou diversos estados da Região Norte; o Laboratório de Quadrinhos, promovido pelo coletivo BRT na Casa da Linguagem; além de projetos viabilizados por editais de incentivo, entre outras ações.

A partir desse contexto, é possível compreender que as dinâmicas de coletividade se estabelecem nas relações com outros coletivos de quadrinhos, com outros artistas, mas também se realizam dentro dos próprios grupos, que buscam gerar apoio mútuo, estabelecer funções e dividir demandas. Além disso, a coletividade também se mostra no convívio dos quadrinistas, nas parcerias que firmam, nos encontros que realizam, enfim, criando sociabilidades que formam o cenário de quadrinhos em Belém.

Com Deleuze e Guattari (2011), a noção de coletividade pode ser pensada como rizoma, uma rede que cresce em múltiplas direções, sem centro fixo, sem hierarquia predeterminada. Os coletivos de quadrinhos em Belém, com suas conexões e articulações, atuam a partir dessa perspectiva: artistas que integram diferentes grupos, iniciativas que se originam de encontros casuais, projetos que surgem de experiências anteriores. Essa lógica rizomática contextualiza uma coletividade que não está voltada à unidade do grupo, mas se projeta em redes de criação partilhada.

Nesse contexto, as interações entre os coletivos de quadrinhos se configuram como um rizoma, abrangendo um cenário mais amplo da produção de quadrinhos. Como afirmam Deleuze e Guattari, “O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos” (Deleuze; Guattari, 2011, p. 22). Essa concepção reforça a construção dos coletivos e da cena de quadrinhos em Belém como um rizoma que se renova continuamente, cujas linhas se rompem, se reorganizam e se conectam, sem seguir uma estrutura fixa, mas sim evidenciando seu caráter mutável e dinâmico.

Embora a noção rizomática seja relevante para compreender as dinâmicas dos coletivos, especialmente pela maleabilidade e multiplicidade que estruturam essas redes criativas, é possível identificar certas fissuras quando essa perspectiva é aplicada aos coletivos de quadrinhos. À primeira vista, as trocas e colaborações entre esses grupos podem parecer harmoniosas. No entanto, assim como ocorre em outras dinâmicas sociais, surgem tensões e desencontros que impactam suas formas de organização. Em muitos casos, essas trocas ocorrem não necessariamente entre os coletivos em si, mas por meio da movimentação dos próprios quadrinistas que, ao longo do tempo, contribuem com um grupo específico, mas acabam redirecionando seus caminhos conforme as afinidades e os contextos se transformam.

Se, por um lado, esses grupos apresentam uma aparência horizontal, como em um esquema rizomático (Deleuze; Guattari, 2011), por outro, existem assimetrias que questionam essa percepção. Dentro dos coletivos, é comum a formação de núcleos, como conselhos ou equipes editoriais, que assumem funções de coordenação, atribuindo tarefas aos quadrinistas, gerenciando recursos financeiros e definindo as próximas produções. Assim, o discurso de coletividade não representa uma condução uniforme e homogênea, uma vez que a presença de hierarquias estruturadas revela articulações internas mais complexas.

A partir desses indicativos, é possível problematizar a noção de coletividade como algo em constante construção, não se trata de um conceito pré-estabelecido e fixo, mas de uma ideia que se (re)configura ao longo da pesquisa, renovando-se a cada conversa e troca com os coletivos. Embora possa representar a união de pessoas em torno de um objetivo comum, também engloba as socialidades e sociabilidades promovidas por esses grupos, marcadas por fissuras e heterogeneidades que revelam diferentes formas de organização e modos de interação entre si.

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2ª ed. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 2011.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

SIMMEL, Georg. Sociologia. Organização de Evaristo de Moraes Filho. Tradução de Carlos Alberto Pavanelli. São Paulo: Ática, 1983.

SOUZA, Vince; OLIVEIRA, Otoniel. Uma breve história do quadrinho paraense. Belém: Secult/PA, 2019.


  1. Doutoranda em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM/UFPA),
    Mestra em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPLSA/UFPA). ↩︎